Segundo
o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – que, como o
próprio nome sugere, é um manual para profissionais da área de saúde
mental, o qual lista transtornos e critérios para diagnosticar os mesmos
– a “sociopatia” é um termo vulgarmente conhecido para Transtorno de
Personalidade Antissocial.
O Transtorno é definido como um padrão
pervasivo de desprezo e violação dos direitos do próximo, acompanhado de
desdém e inconformidade perante às normas sociais estabelecidas. É
marcado pela impulsividade, agressividade, extrema imprudência em
relação à segurança, dissociabilidade familiar e uma ausência de remorso
caracterizada por “indiferença ou racionalização ao ter manipulado,
ferido, maltratado ou roubado outra pessoa”. Um sociopata é indiferente
aos sentimentos dos outros e não constrói quaisquer laços afetivos,
sendo muitas vezes incapaz de chegar a conviver com animais domésticos
(e muito menos ter apreço pelo sentimento destes).
Embora despertem notável curiosidade, nós
provavelmente não iríamos querer conhecê-los pessoalmente, trabalhar
com eles ou até mesmo namorá-los. O problema é que, segundo as
estatísticas, talvez o façamos. A psicóloga Martha Stout – instrutora
clínica em psiquiatria na Harvard Medical School há 25 anos – estima em seu livro “The Sociopath Next Door”
(Meu Vizinho é um Psicopata, no Brasil) que 4% da população é composta
por sociopatas inconscientes, que não possuem empatia ou sentimentos
afetivos por humanos ou por animais.
4% pode não parecer muito. Mas, usando os
Estados Unidos como exemplo, significa que 12 milhões de americanos são
sociopatas. Porque os sociopatas são implacáveis e impiedosos com seus
rivais, capazes de qualquer coisa para alcançar seus objetivos – e, ao
mesmo tempo, são ótimos em fingir se importarem com as pessoas – eles
podem ser incrivelmente destrutivos. Eles seriam rapidamente descobertos
em pequenos grupos, mas em uma sociedade tão grande quanto a nossa eles
podem chegar a alcançar posições de muito poder e influência.
É possível que muitos de nós já
estivéssemos familiarizados com as características e definições de um
sociopata, principalmente por conta das constantes abordagens e
aparições na literatura e no cinema. Por serem livres da culpa, das
consequências emocionais e dos dilemas morais que assolam as outras
pessoas, é no mínimo instigante conhecer e analisar personalidades
sociopatas (de uma distância segura).
Vamos conhecer agora alguns dos inesquecíveis sociopatas da literatura:
10. Becky Sharp — Vaidade e Beleza, de William Makepeace Thackeray
Habilidades: Bilíngue (Francês e Inglês),
possui uma voz encantadora, é uma talentosa atriz e pianista, além de
graciosa e charmosa.
Becky é o que podemos nos referir como
uma “batalhadora nata”. Uma órfã cujo objetivo é ascender socialmente,
independente do que for preciso. Becky seduz maridos alheios, engana
credores, ajuda seu próprio marido a trapacear nos jogos, e
provavelmente chegou a matar alguém só pelo dinheiro do seguro de vida.
Ela é incapaz de criar laços ou mostrar afeição sincera para qualquer
um, nem mesmo ao seu próprio filho (ao qual ela negligencia e desdenha) e
marido (ao qual abandona em detenção para que ela possa dormir com
outros homens a fim de ganhar notoriedade social). Tudo isso sem um
vislumbre sequer de culpa.
Citação: Lady Jane descreve Becky como
“uma mulher perversa – uma mãe insensível, uma esposa falsa. Ela não
teve uma família, mas se esforçou para trazer consigo a miséria e
enfraquecer as mais sagradas afeições com todas as suas bajulações e
mentiras… sua alma é negra com a vaidade, o mundanismo e toda a sorte de
crimes. Eu estremeço quando a toco. Eu mantenho meus filhos longe de
sua vista.”
9. Anton Chigurh — Onde Os Fracos Não Têm Vez, de Cormac McCarthy
Habilidades: Implacável, inflexível e
quase, quase indestrutível. Capaz de resistir a ossos quebrados e
diversas injúrias físicas que abateriam qualquer um.
Esse assassino a sangue-frio obtém imenso
prazer em matar pessoas (principalmente perfurando seus crânios com uma
furadeira). Chigurh vingava-se impiedosamente, tirando vidas sem
qualquer remorso e, algumas vezes, chegando a determinar se deve ou não
matar alguém através de um simples cara-ou-coroa.
8. Tom Ripley — série The Ripliad, de Patricia Highsmith
Habilidades: Seus hobbies incluem forja, jardinagem, arte e, é claro, a criação de métodos inovadores de assassinato.
Se Becky Sharp de Vaidade e Beleza
tivesse um perfil no “Match.com” ou “E-harmony”s da vida, provavelmente
combinaria com o de Tom Ripley. Como Becky, Tom é um órfão que tem como
maior aspiração ascender socialmente, integrar-se na elite da
sociedade. Não contente em ser um vigarista na cidade de Nova York, Tom
encontra um moço rico, mata-o com um remo e assume sua identidade. No
curso dos cinco romances, Tom – descrito por Highsmith como “cortês, bem
disposto e completamente amoral” – aproveita a “boa vida” usando o
dinheiro do falecido e, insensivelmente, assassina qualquer um que ouse
começar a suspeitar de sua fraude.
7. Hannibal Lecter —Dragão Vermelho e outros, de Thomas Harris
Habilidades: Psiquiatra licenciado e
renomado, extremamente charmoso, epicurista, bibliófilo (tomem cuidado) e
amante da música. Se você não soubesse de seu canibalismo e de seus
assassinatos em série, ficaria tentado a convidá-lo para um jantar ou
para uma reunião entre amigos. (Só não sirva Chianti).
Outro órfão! Lecter assistiu sua irmã ser
vítima de canibalismo quando tinha apenas 8 anos de idade. Por conta
disso, começa a matar todos os homens que tiveram um papel na morte dela
– mas não para por aí. Acaba por tornar-se um prolífico assassino em
série e um canibal sedento de sangue, mais tarde chegando a escapar da
prisão ao cortar o rosto de um guarda vigilante e usar sua pele como
máscara.
Em outro momento, declara: “Certa vez um recenseador tentou me testar. Comi o fígado dele com favas e um bom vinho.”
Nota-se que Lecter não é um dos mais sutis.
6. Frank — The Wasp Factory, de Iain Banks
Habilidade: Ele é escocês, então
provavelmente possui um sotaque encantado, mas exceto isso não possui
muitas qualidades redentoras.
Nós conhecemos Frank com seus 16 anos,
para descobrir que nessa idade ele já esteve ocupadíssimo matando três
crianças – quando tinha apenas 10 anos de idade – o que explica como
sendo “somente uma fase”. Ele cria um aparelho que força vespas a
escolherem o método através do qual se darão suas respectivas mortes
(morrerão queimadas? Afogadas em urina? Fatiadas? Comidas por uma
aranha? Tantas opções!) e ritualisticamente mata animais de grande porte
para colocar suas cabeças em “mastros de sacrifício” ao redor da ilha
onde mora. E, apesar disso, seu pai e seu irmão fazem com que ele pareça
a personificação da santidade, digno de uma canonização.
Citação: “É claro que eu estava fora de
casa para matar coisas. De que outra forma eu poderia conseguir cabeças e
corpos para os Mastros e para o Paiol, se não matasse nada? Não há
mortes naturais suficientes. E ainda assim, é impossível fazer com que
as pessoas entendam isso.”
5. Iago — Otelo, de William Shakespeare
Habilidades: Mentiroso consumado, mestre em manipulação e instigantemente maquiavélico.
Como assessor “honesto” e “confiável” de
Otelo, Iago podia até ter sido um competidor para o “Funcionário do Mês”
– até que foi rejeitado para uma promoção. Ele planeja derrubar Cássio
(que pegou sua promoção), convence seu chefe de uma suposta infidelidade
de sua esposa e planeja destruir Otelo sem ser percebido. Tudo isso
antes de matar seu aliado e convencer Otelo a matar a própria esposa. Um
estudioso de Shakespare afirmou que “a maldade em nenhum outro lugar
foi antes representada com tanta maestria como no personagem de Iago.”
4. Cathy Ames (ou Kate Amesbury) — A Leste do Éden, de John Steinbeck
Habilidades: Especialista em desejos sexuais depravados e talentosa em imitar emoções verdadeiras.
Finalmente, um sociopata em nossa lista
com pais atenciosos e carinhosos! Claro, isso até ela matá-los ateando
fogo na casa em que estavam. Cathy acredita que todas as pessoas são tão
más quanto ela (e esperamos que ela esteja errada). Enquanto jovem,
leva um de seus professores a cometer suicídio, seduz um homem casado e
incrimina dois jovens garotos por estupro. Passa sua vida manipulando
homens em benefício próprio, chegando a casar com um homem no qual atira
a sangue frio após tentar, sem sucesso, abortar seus gêmeos com uma
agulha de costura. Quando questionada sobre a pretensão de matar o
próprio marido, responde: “Se eu quisesse matá-lo, ele não estaria agora
vivo. Pode perguntar aos meus pais.” Ela abandona sua família, muda o
nome para Kate Amesbury e vai trabalhar em um bordel no qual faz amizade
com a dona do estabelecimento a fim de angariar sua simpatia – e então
começa a, vagarosamente, envenená-la até a morte. Ela transforma o
bordel em um covil de depravação cujo foco são os mais obscuros desejos
sexuais, e coleciona material de seus clientes para usar em posteriores
chantagens. Quando um de seus filhos descobre que sua mãe, na verdade,
não está morta, e sim comandando um bordel deste porte, comete suicídio.
Cathy/Kate permanece na total indiferença.
3. Alex — Laranja Mecânica, de Anthony Burgess
Habilidades: Possui um enorme senso de liderança e um talento para gírias bizarras.
Alex e seus “drugues” eram tão “hardcore” que referir-se aos seus atos como violentos seria um eufemismo. Suas noites de ultra-violência
incluíam assalto, estupros, espancamento de moradores de rua, roubos,
brigas violentíssimas, entre outros.Quando parava de drogar e estuprar
menininhas de 10 anos de idade e de assassinar as mulheres mais velhas,
Alex passava os dias descansando em seu apartamento, fantasiando sobre
mais violências enquanto relaxava ao som de música clássica. Nem a
cadeia foi o suficiente para reformá-lo. Acaba espancando até a morte um
colega de cela ao qual achava desagradável e isso faz com que, então,
seja convidado a participar de uma técnica experimental para controlar
seus impulsos obscuros a fim de inserí-lo na sociedade sem posteriores
danos. A partir de então inicia-se a sua conhecida e aclamada (sobretudo
bizarra) trajetória, que levanta profundas reflexões a respeito da
natureza humana e da vida em sociedade.
2. Kevin — Precisamos Falar Sobre o Kevin, de Lionel Shriver
Habilidades: Exímio arqueiro.
Descrito como portador de “uma apatia tão
absoluta que é quase como um buraco no qual você pode perder-se
dentro”, Kevin mostrou-se frio e insolente assim que saiu do ventre de
sua mãe. Suas maiores maldades e seu maior desprezo são reservados
especialmente a ela – e acaba tendo outro filho apenas para se sentir
conectada com algum membro de sua família –, embora as tendências
malignas de Kevin não se estendam somente a genitora. Dentre outros atos
perversos, Kevin mata o hamster de estimação de sua irmã e é suspeito
de cegá-la com um desinfetante. Apesar de todos esses “pormenores” (nos
quais a perversidade passa despercebida aos olhos de outras pessoas além
de sua mãe, Eva), seu pai decide que seria ótimo ensiná-lo a tornar-se
um exímio arqueiro – um hobby bastante adequado a um jovem psicopata,
por sinal. Evitando estragar uma instigante experiência com o livro ou
com o filme, não serão ditos spoilers. Basta dizer que é um tanto óbvio que as coisas terminem de uma maneira não muito boa.
1. Patrick Bateman — Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis
Habilidades: Um estiloso e bem-sucedido bancário, com um extenso conhecimento de músicas dos anos 80.
Entre comparar cartões de visita e tomar
coquetéis com outros investidores bancários, Patrick se ocupa com
insensíveis assassinatos e sessões intensas de tortura. Após matar um
colega de trabalho, perde o controle de seus impulsos violentos e passa a
praticar necrofilia, canibalismo (chega a fazer bolo de carne com uma
moça), mutilação e horripilantes assassinatos envolvendo motosserras,
furadeiras e até mesmo ratos. O charme de Bateman, seu completo desapego
a tudo e a sua ausência absoluta de emoção ou remorso faz com que ele
seja o mais perturbador sociopata de nossa lista.
Para os escritores e cineastas, é
interessante criar personagens sociopatas porque eles são, sobretudo,
imprevisíveis. Eles fazem o que querem, quando querem, sem qualquer
remorso. Os sociopatas criam polêmicas e reviravoltas que prendem o
leitor; este acaba ficando imerso e chocado, ao mesmo tempo, com o
particular universo desregrado dessas figuras.
O interessante é que muitos desses
personagens (senão todos) fazem com que o seu Transtorno passe
despercebido por todos a sua volta. Minimamente alarmante, não?