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Tudo que é vivo morre. Não há como impedir. E a dra. Helena Colden quase morta, mas ainda presa a sua vida material, sente isso com intensidade. Ela era veterinária e fazia parte da sua profissão facilitar a morte daqueles seres. Salvava vidas, mas depois às vezes ela as tirava. Naquele momento intermediário e também crucial, ela percebe claramente a dissonância criada pelas suas ações. Em Por dizer, o autor estreante Neil Abramson, também reconhecido advogado especializado em defesa dos animais, constrói uma narrativa inspirada e que toca em temas polêmicos: a espiritualidade e afetividade mantida entre homens e bichos mesmo após a morte e a possível sobrevivência da consciência humana.
Apesar de morta, Helena continua vinculada a todos aqueles que amava. David, seu marido e advogado; seis gatos, a porca, Collete, o casal de cavalos, Alice e Arthur; o labrador Chip, Bernie e um pastor schipperke, chamado Skippy. Atraída pelo leve cheiro de anestésico, álcool, fezes de cães e urina de gato, a consciência de Helena retorna também, por exemplo, para o consultório onde trabalhava com o doutor Joshua Marks. Revê a rotina do médico veterinário, e também observa as assistentes Eve e Beth. Enquanto a primeira a auxilia com um cão, a segunda adentra a porta com um animal atropelado. O contato com os procedimentos cotidianos na clínica mexe com suas emoções. Ela transita pelo local e percebe também Prince, um enorme gato malhado que segue Joshua por todo espaço. Quando o médico resolve retirar a placa de identificação de Helena como médica de lá, o gato mia bem alto para ele.
Logo após a sua morte, Helena recorda fatos marcantes de sua biografia. Uma delas foi o seu envolvimento em experiências de laboratório com animais. Ela e a amiga, a dra. Jane Cassidy, popularmente conhecida como Jotacê, compartilharam uma vivência dolorosa quando se tornaram pesquisadoras e sócias da médica veterinária Renee Vartag, especializada na área de imunologia dos primatas. O trabalho delas envolvia cuidar da cobaia, um chimpanzé-pigmeu chamado Charlie. Enganadas pela médica, que começou a infectar o animal com o vírus da hepatite C para testá-lo, e afeiçoadas a ele, ambas tentaram lutar contra a poderosa autoridade. Tudo em vão. O máximo que conseguiram foi serem demitidas de suas funções e afastadas do contato com o primata.
No seu transe espiritual, Helena reencontra novamente a dra. Jane Cassidy, desta vez conduzindo outro estudo, antes de adoecer gravemente de câncer. Para realizá-lo, Cassidy tem a colaboração de Cindy, a chipanzé que, após quatro anos de trabalho intenso, adquiriu uma habilidade significativa na comunicação com a linguagem humana. No entanto, a pesquisa e também a sobrevivência de Cindy estão ameaçadas. Verbas para este tipo de metodologia que não sacrifica e expõe os animais a processos de violência ainda são malvistas no mundo acadêmico. E Helena, extremamente vinculada a Cindy, seria capaz de interferir neste caminho? Surge alguma esperança para resolver esse impasse quando Jane pensa em David como um possível advogado defensor da causa.
Em Por dizer o autor constrói, utilizando uma linguagem tocante e vinculada à espiritualidade, um rico painel sobre as relações e vínculos estabelecidos em vida, mas que sobrevivem ao tempo e até mesmo à morte. Neil Abramson foca sua atenção principalmente na capacidade humana de transformação. Se tudo morre, tudo muda. Mas o amor e consciência entre homens e animais permanecem.
Fonte: Rocco